quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Estórias de um passado-presente (IV)

Travessa Henrique Cardoso.
De telefone em punho, era guiada até à porta que havia de abrir uma parte do meu destino.
Toquei, abriu-se a porta do prédio, e tenho ideia de ter descido a uma cave. Tenho ideia, porque, de facto, não me lembro. Os pré-conceitos que tinha até então começaram a desfazer-se, mas eu não queria naquele momento percebê-lo. Era mais fácil achar que "isto não é o que parece".
Quem me recebeu - a madame (conceito que só entendi muito mais tarde) - era uma roliça figurinha, com um decote para lá de generoso e um vestido com um padrão... alegórico. Pôs-me a mão no ombro, e aproximou-me para me cumprimentar. Eu, alérgica a beijinhos e abracinhos de estranhos, fiquei meia aparvalhada e deixei-me ir. "Mas que raio?!?!?" - pensava eu.
A sessão de perguntas iniciada via telefone recomeçou. Pareceu-me interesse em perceber se eu era de facto maior de idade, e se de facto era "verde". Tentei responder, não percebendo muito bem a razão do questionário, mas, ainda assim, não me pareceu que fosse "educado" não o fazer. Seguiu-se um despejamento de informação. E aí a cabeça deu um nó. Mais uma cartinha que saia do castelo racionalizado que eu construíra.
Foram-me explicadas as "regras do jogo". Existiam taxistas que traziam turistas até ao apartamento, e que eram recompensados por isso. Existiam anúncios no jornal, mas esses "pagavam mal". Convívio normal, 40€. Convívio completo, 60€. Despachar os homens o mais depressa possível, porque se aparecesse algum "cliente dos táxis" não podia ficar à espera. E os "clientes dos táxis" pagavam melhor. Cem ou cento e vinte euros, dependendo. Com esses não se podia ter pressa, porque se gostassem de nós seriam generosos. Se fosse uma hora, o valor duplicava.
Devo ter perguntado tudo e mais qualquer coisinha. Tudo aquilo me estava a fazer curto-circuito. Estava a tentar pensar no que se passava com os "clientes" enquanto fazia contas aos euros que tinham acabado de surgir na conversa. Somava e subtraia-me enquanto tentava processar o facto de, não tardando muito, ter alguém a entrar pela porta que eventualmente quereria deitar-se comigo.
A conversa era interrompida pelo toque da campainha. Era um dos taxistas que viera falar com a C.. Lembro-me de estar encostada a uma mesa na cozinha, e, enquanto ela ia buscar qualquer coisa para lhe entregar (presumo hoje que o seu quinhão no acordo), ele dirigiu-se a mim. Tocou-me na anca, e disse-me que "um dia destes venho para estar contigo". Tremi. Tremi mais que alguma vez me lembro de ter tremido na vida. Eu era aquilo que até hoje gosto de catalogar-me como "patinho feio". E aquele homem, que na altura me pareceu asqueroso, dizia-me taxativamente que queria qualquer coisa comigo. Não era um príncipe encantado charmoso e cheiroso, como os dos relatos das meninas das revistas. Era um homem "normal", igual à maioria dos homens por quem nunca me passaria pela cabeça até à data ter qualquer tipo de envolvimento com. O que senti na altura (e confesso re-sinto agora ao lembrar) não cabe em nenhuma das dicotomias que uso para descrever sentimentos.
O meu estômago que se queixava desde que decidira sair de casa em busca do que achava que me servia naquele momento protestou com uma vêemencia tremenda. Senti-me mal, e pedi para começar no dia seguinte, com a desculpa que não tinha planeado ficar tanto tempo fora. Ficou aprazada a volta ás quatro da tarde, e até à meia-noite. Saí dali confusa, inquisitiva, a precisar desesperadamente de respostas aos trocentos pontos de interrogação que tinha dentro da cabeça. Voltaria, então, no dia seguinte... Fui para casa a perguntar-me se sim. E acho que só tive certeza, quando toquei novamente à campainha.

1 comentário:

  1. Gosto da tua forma de escrever. Muito expressiva e dá bem ideia dos dilemas por que deves ter passado.

    Beijos.
    Bela

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